2018 – esperança de cicatrizarmos as feridas ainda abertas de 2017.


Na madrugada nos despedimos de mais um ano, junto com ele, toda nossa maior força humana em deixar na página do PASSADO, os momentos mais tristes e sombrios dos tempos de hoje, digo, de ontem. 
De ontem, porque seguiremos tomando ATITUDES, posicionadas no PRESENTE, à construção do Desenvolvimento Humano Integral no FUTURO. Desenvolvimento que passa, necessariamente, pelo nosso ADEUS a toda e qualquer forma, sinais e sintomas de doenças que trazem implicações na produção social da saúde. 
Como falar de Saúde, se a Violência, de Norte a Sul, toma conta do mapa do nosso país? Manchas de sangue que ficam no chão por onde andam os 53,8% dos jovens de 15 a 29 anos. [1] Meninos negros, pobres e das periferias das cidades. Cidades que dizem aumentar as estatísticas aos olhos vivos do PIB nacional, melhor, de suas riquezas não distributivas. Entretanto, sobre esses mesmos olhos, paira uma cegueira noturna que não permite enxergar as tragédias diárias do último ano: “apenas em três semanas foram assassinadas no Brasil mais pessoas do que o total de mortos em todos os ataques terroristas no mundo nos cinco primeiros meses de 2017, que envolveram 498 atentados, resultando em 3.314 vítimas fatais.” [2]
Ali, esses homicídios são naturalizados. Ou encurtam o caminho, ampliando as faces da violência com propostas e ações de redução da idade penal, truculência policial, encarceramento em massa e gritos bárbaros: “bandido bom é bandido morto”. A miopia e a surdez do Estado brasileiro confirmam sua omissão de aberturas de janelas de oportunidades à uma educação pública, gratuita, inclusiva e de qualidade. Essa sim, redutora da crise civilizatória que condena as negras e negros a reviverem, cotidianamente, o triste legado histórico de discriminação da cor de sua pele e das pedras incontáveis de suas vidas. E por onde anda o Estado guardião de vidas humanas? 
Como falar de Saúde, se 2017 foi o ano que reforçou a intenção do Estado em transferir a responsabilidade ao mercado de “ofertar” moradias às famílias de baixa renda. Ou seja, fortalece o clássico modelo de política pública de habitação baseado na promoção do mercado e do crédito habitacional para a aquisição da casa própria. É a hegemonia da “...propriedade individual escriturada e registrada em cartório sobre todas as demais formas de relacionamento com o território habitado, que constitui um dos mecanismos poderosos da máquina da exclusão territorial e de despossessão em marcha” [3].
Outrossim, moradia, hoje, é encarada como um ativo econômico, não um direito. Esse drama é retratado nas telas dos cinemas. O filme Era O Hotel Cambridge [4], revela o cotidiano dos passos atrás que os governos vem dando, em não assegurar condições dignas de moradia, tanto em relação ao espaço físico, quanto ao assentamento legal. Desse modo, resistem os moradores da ocupação Aqualtune[5] do Bairro Planalto, em São Bernardo do Campo, no ABC Paulista, aquele que fez Caetano Veloso nos lembrar: "Ser impedido de cantar não é bom. Mais do que nunca é preciso cantar”, como diz a música de Vinícius de Moraes (Marcha de Quarta-feira de Cinzas) [6]. E o que dizer do Sol Nascente, considerada a maior favela da América Latina [7]. Está bem ali, no centro de decisão dos poderes da República, nos lembraram os jovens estudantes quando lideraram um movimento à construção de moradia para aquelas famílias que se somam a muitas Brasil a fora. 
Assim, como nos lembra Guilherme Boulos: “No Brasil, o direito à propriedade não é absoluto. A Constituição Federal assegura o direito à propriedade privada desde que cumpra uma função social. Ou seja, os imóveis que se encontram permanentemente desocupados não cumprem nenhuma função social, logo, são “ilegais”. Ah! Para não esquecermos, há mais de 7,2 milhões de imóveis sem função social enquanto o déficit habitacional atinge quase 1/3 da população brasileira.
Como falar em Saúde, se o ano que se foi teimou em não garantir alimentos suficientes, seguros, adequados e saudáveis na mesa de centenas de milhares de famílias nos mais diferentes recantos do nosso país. Melhor, ao lado da UnB, ali na L4,..., enquanto isso, os recursos alimentícios estão frequentemente expostos à especulação, que os encara somente em função dos ganhos econômicos dos grandes produtores ou das estimativas de consumo.
O Papa Francisco, na sede da agência das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), e diante dos ministros da agricultura do G-7, pediu: “Governos, deixem de lado os discursos vazios e atuem imediatamente contra as causas da falta de acesso de centenas de milhões de pessoas aos alimentos [...]”. Estas famílias, apropriadas de suas terras, para além da agricultura, teriam melhores condições de “evitar que a fome se torne uma doença incurável”.
Como falar de Saúde, se em 2017 persistiu o desemprego, a concentração de renda e a diferença de salários entre homens e mulheres. Entre negras(os) e brancas(os). Adicionados à situação de trabalho precário e de natureza vulnerável, (empregados sem carteira, trabalhadores domésticos, terceirizados) para citar alguns que rumam, cada vez mais, para o aprofundamento das desigualdades socioeconômicas, nos limitando o acesso ao lazer, cultura e outros que compõem o quadro do conceito ampliado de Saúde. 
E assim 2017 virou a página, ainda com muitas feridas abertas. Violência, crianças desmaiando nas escolas, torneiras vazias, mortes por doenças evitáveis, degradações ambientais, comércio de lixos hospitalares, falácias, invasões e desrespeitos entre os dirigentes políticos. Negligência, passividade ou pequinês civilizatória na Cidade da Esperança?
2018, PRESENTE! Que os valores e princípios da Reforma Sanitária nos sirvam de guia, sem medo de irmos às raízes dos seus determinantes, onde as pessoas compreendam a grandeza de sua complexidade. Sem os quais teremos apenas discursos efêmeros e sofismas linguísticos à justificativa das inações. 




[1] Atlas da Violência 2017 Ipea e FBSP, Rio de Janeiro, 2017.
[2] Informações provenientes do "mapa do terrorismo", fruto de uma parceria entre a Esri Story Maps e a PeaceTech Lab (ver: https://storymaps.esri.com/stories/terrorist-attacks/?year=2017). No número citado já se incluiu as 22 vítimas do ataque no show da Ariana Grande em Manchester em 22/05/2017.
[3] ROLNIK, R. Guerra dos lugares. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 13.
[4] Recentemente a vida de uma ocupação foi retratada nos cinemas. Em outubro de 2016 esteve em cartaz em algumas salas o filme Era O Hotel Cambridge. O drama, dirigido por Eliane Caffé, transmite ao público o cotidiano da ocupação Hotel Cambridge, localizada no centro de São Paulo, iniciada em 2012.
[5] Homenagem à avó materna de Zumbi dos Palmares: Princesa Aqualtune.
[6] Esse fato é descrito com mais detalhes no livro ‘’ Por Que Ocupamos? Uma Introdução À Luta dos Sem-Teto’’, escrito por Guilherme Boulos, líder do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto e membro da Frente Povo Sem Medo.
[7] "O sol nasceu para todos" documentário produzido pelo  jornalista Davidson Pereira, dirigido por Alan Mano K.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Pedro Parente demitido. Não basta!

Memórias da Saúde no Brasil - 1

Galopantes aumentos dos combustíveis: onde vai parar tudo isso?