Há vacina contra arrogância?
A
história da humanidade nos reporta a avanços advindos da atuação de estadistas,
cientistas como eram, deixando marcas gravadas em vacinas que evitaram muitas
mortes em seres humanos.
Não farei
aqui um inventário histórico sobre o nascimento das vacinas, recordo apenas
algumas iniciativas
singulares, a começar por Lady Mary Wortley Montagu, que levou para o Reino
Unido a primeira ideia da vacinação, após uma viagem a Istambul, onde concordou
com a vacinação de seu filho de seis anos contra a varíola. Apesar da técnica
ter sido iniciada, ela só passou a ser estudada a partir de 1780. Mas foi em
1796 que Edward Jenner revelou 23 casos detalhados em um livro intitulado “Uma
investigação sobre as causas e efeitos da vacina contra a varíola”. (RONAN,
1987, p.150).
Louis
Pasteur descobriu ainda vacinas contra o antraz, em 1881, e no ano seguinte
contra a hidrofobia, e mais, “estavam sendo descobertos métodos de separar
grupos de bactérias e cultivá-los em laboratório, fora de seus hospedeiros
animais, técnicas que, no século XX, deveriam fornecer muitas outras vacinas,
inclusive contra a poliomielite e a febre tifoide”. Pasteur não se arrogou
quando afirmou: “Ainda não me atrevi
tratar os seres humanos mordidos por cães raivosos, mas o tempo disto não está
longe, e estou mesmo muito inclinado em começar por mim mesmo, inoculando-me
com a raiva e em seguida avaliar as consequências; porque estou começando a ter
muita certeza dos meus resultados” (RONAN, 2001, p. 35).
Mas
é lamentável que, há mais de 200 anos, ainda não se tenha avançado na
descoberta contra o vírus da arrogância, em especial a arrogância científica,
ideológica, intelectual, política, institucional, e todas as outras facetas que
nos limitam o compartilhar generoso, a convivência respeitosa, a tolerância e,
principalmente, o exercício da paciência em compreender os outros e suas
condições humanas.
Por isso,
creio que não seja necessário confundir o sentido do termo arrogância com
orgulho, desdém, desprezo, sentimento de superioridade, imaginação de um falso
poder, meias verdades. Senão atitudes que, somadas ao exercício arbitrário de poderes
sobre outrem, despossuindo-o parcial ou completamente de suas características
de um ser livre; este diminuir substantivamente sua condição humana,
denominaríamos de arrogância de toda e qualquer natureza. Atitudes que se
aproximem dessas situações, imaginei ter deixado para trás, nos ‘tempos
sombrios’ de sociedades brutamente hierarquizadas. Mas é preciso nos interrogar
sobre o futuro das doenças miseráveis que ainda assolam nossas sociedades democráticas,
entre elas a arrogância.
E, como a
democracia, pelo menos em tese, é o estado pleno da liberdade de cada um, ela não
pode, de forma alguma, abrir janelas para tipologias arrogantes, uma vez que
nenhum ser humano pode abrir mão de sua condição cidadã.
Assim,
devemos insistir, persistir, em deixar para trás, junto com as fumaças de pólvoras, e barulhos
das cavalarias, os boçais, que defendem a arrogância científica, usando-a com escudo, no mundo
positivista, neoliberal, como a referência, em seus meandros da pesquisa, absoluta
em seus dizeres de ‘verdade incontestável’, quase uma razão competente. E aqui
não há lugar para as pessoas precarizadas, em dificuldades ou de poucas posses de
qualquer natureza.
Nesse
particular, não podemos desistir de seguirmos ajudando a construir uma outra
sociedade, onde podemos fazer uma constatação: a arrogância tem que desaparecer,
não pode se estender, não podemos alimentar os ditames de ‘salve-se quem puder’,
o egoísmo institucional não pode cresce, o pensamento dos bons não deve ficar moribundo,
e a intolerância não pode se instalar nas paredes das casas grandes como se
natural fosse. Porque se dermos brechas para essa doença, ainda fortemente
presente nas sociedades modernas, ouviríamos o que já disse o austríaco Karl
Kraus (1834-1936), antes da Primeira Guerra Mundial: “Estaríamos assistindo aos
últimos dias da humanidade”?
E, se
assim fosse, estaríamos dando abertura as numerosas portas, até́ aqui apenas
entreabertas, para atitudes arrogantes, sejam individuais ou partilhadas
socialmente (coletivamente), o que reforçaria uma crença à soberba, a
violências físicas e morais, a significações culturais de práticas aéticas, imprescindíveis
à construção e ao exercício daquilo que reconhecemos como racionalidade e
subjetividade modernas. (ZOJA, 2000, p. 22).
E no
mundo moderno, os indivíduos, multifacetados e universais como pretendem ser, não
podem valer-se da razão e do livre arbítrio inerentes a toda pessoa, para agir
de forma desmedida. Há uma razoabilidade no exercício do dever público e
privado. Digo, não podemos agir segundo os desejos do impulso, carregado de ‘subjetividades’,
se assim posso denominar. Aos que dizem ao contrário, ninguém que assume e
exerce funções públicas (servidores) por direito e deveres intuídos, pode agir
de forma contrária aos pactos construídos na instituição, sob alegações de razões
pessoais e a observância ao conjunto de direitos fundamentais, como o princípio
da condição, dignidade humana para permissão do tudo pode ser (em nome dos
direitos), perdendo de vista os deveres socialmente instituídos e
contratados.
Não
podemos esquecer que há igualmente uma ética da arrogância em ação nas
sociedades capitalistas liberais, do passado e do presente, que invade e
perpassa os vários campos da ação humana, do espaço público ao íntimo nas
formas de se conduzir no mundo (FOUCAULT 2001, p. 1533). Dito de outra forma, a
arrogância constitui-se em sentimento moralmente pobre que reproduz e reforça a
noção do sujeito, autocentrado, desmedido, que se percebe e quer ser percebido
como ‘sem limites’ e hoje, mais do que nunca, precisamos seguir na rota do que
Hannah Arendt, anteriormente, em 1958, já́ apontara como “o desejo de fugir à condição
humana” presente nos esforços da ciência “para tornar artificial a própria
vida, por cortar o último laço que faz do próprio homem consigo próprio e com a
natureza.” (ARENDT 1981, p. 9)
Assim,
Agnes Heller já visualizava essa questão quando no livro “O homem do
Renascimento” nos instigava a pensar e viver num mundo onde existíssemos como
um mundo humano. Onde nada e ninguém nos impusessem limites à atividade da
humanidade, exceto a própria humanidade (HELLER 1982). Logo, necessitamos
urgentemente de estadistas, cientistas, professores, sobretudo educadores,
capazes de encontrar uma vacina contra o vírus da arrogância, antes que sejamos
obrigados a responder a questão do poeta Karl Kraus: “Estaríamos assistindo aos
últimos dias da humanidade”? Hoje, reformularia: em plena sociedade
democrática, a humanidade está perdida?
Referências:
ARENDT,
Hannah. A condição humana. Trad. R.
Raposo. Rio de Janeiro: Forense, 1981.
_________. Walter
Benjamin: 1892-1940. In: Homens em
tempos sombrios. São Paulo: Companhia de Bolso, 2008, p. 165-222.
FOUCAULT,
Michel. [1984] L ́ethique du souci du soi comme pratique de la liberte. In: Dits et écrits. Paris: Gallimard,
2001.
HELLER,
Agnes. O homem do Renascimento.
Editorial Presença, 1982.
RONAN, C. História Ilustrada da Ciência da
Universidade de Cambridge. Trad.
Jorge Enéas Fortes. Vol. 3: da renascença à revolução
científica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1987.
_________. História
Ilustrada da Ciência da Universidade de Cambridge. Trad. Jorge
Enéas Fortes. Vol. 4: a ciência nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
ZOJA,
Luigi. História da arrogância.
São Paulo: Axis Mundi, 2000.
Instigante!
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